STF aprova a criminalização da homofobia

Da BBC News Brasil em São Paulo – 

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou na quinta-feira, 13 de junho, que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero seja considerada um crime.

Dez dos onze ministros reconheceram haver uma demora inconstitucional do Legislativo em tratar do tema. Apenas Marco Aurélio Mello discordou. Diante desta omissão, por 8 votos a 3, a maioria dos ministros determinou que este tipo de conduta passe a ser abrangida pela Lei de Racismo (7716/89).

Votaram neste sentido Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Celso de Mello, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Luís Barroso, Luiz Fux, e Rosa Weber.

Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio disseram que fazer isso seria criar um novo tipo de crime, o que caberia exclusivamente ao Congresso.

O racismo é um crime inafiançável e imprescritível segundo o texto constitucional e pode ser punido com um a cinco anos de prisão e, em alguns casos, multa.

A questão foi debatida ao longo de seis sessões no STF. O julgamento começou em 13 de fevereiro, quando foram ouvidos os autores dos dois processos (ADO 26 e MI 4733), a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Advocacia-Geral da União (AGU), o Senado e grupos favoráveis e contrários à criminalização da homotransfobia.

Nas duas sessões seguintes, o ministro Celso de Mello, relator de uma das ações, apresentou seu voto. O decano avaliou que o fato do Congresso não ter legislado sobre o tema é uma “evidente inércia e omissão”, algo que Câmara e Senado negam.

Mello propôs que não seja fixado um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema, como pedem as ações, mas que, enquanto isso não for feito, a homotransfobia sejam tratada como um tipo de racismo. Segundo Mello, o conceito se aplica à discriminação contra grupos sociais minoritários e não só contra negros – um ponto controverso entre especialistas da área.

Na quarta sessão, o ministro Edson Fachin, relator da outra ação, concordou com Melo e defendeu a aplicação da Lei de Racismo até haver legislação específica. Ele argumentou que a “omissão do Legislativo” gera uma “gritante ofensa a um sentido mínimo de justiça”.

“Nenhuma instituição pode deixar de cumprir integralmente a Constituição, que não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe”, disse Fachin em seu voto.

Os votos dos relatores foram acompanhados pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Moraes disse que o Congresso sempre ofereceu proteção pela lei penal a grupos sociais vulneráveis, como crianças e adolescentes, idosos, portadores de deficiência, mulheres e consumidores.

“No entanto, apesar de dezenas de projetos de lei, só a discriminação homofóbica e transfóbica permanece sem nenhum tipo de aprovação. O único caso em que o próprio Congresso não seguiu seu padrão”, afirmou o ministro. Moraes concordou que o STF não deve fixar um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema.

Barroso também foi favorável à criminalização. “Se o Congresso atuou, sua vontade deve prevalecer. Se o Congresso não atuou, é legítimo que o Supremo atue para fazer valer o que está previsto na Constituição”, afirmou Barroso.

O ministro disse ainda que que fixaria um prazo para a atuação do Congresso em circunstâncias normais, mas que, diante de manifestações da Câmara e do Senado de que há projetos de lei sobre o tema sendo apreciados, optou por não fazê-lo.

Após o voto de Barroso, Toffoli suspendeu o julgamento em 21 de fevereiro, sob o argumento de que a votação havia se prolongado além do previsto e que seria necessário reorganizar a pauta do plenário para dar continuidade a ela.

Como foi a retomada do julgamento

Quando o julgamento foi retomado, em 23 de maio, Toffoli anunciou que concederia a palavra à ministra Rosa Weber para que proferisse seu voto, quando Celso de Mello o interrompeu para anunciar ter recebido um comunicado do Senado.

O documento informava sobre a aprovação pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa de um substitutivo do projeto de lei 672-19, do senador Weverton Rocha (PDT-MA), que altera a Lei de Racismo para incluir o preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero.

O comunicado informava ainda ter sido aprovado o projeto 191-17, do senador Jorge Viana (PT-AC), que altera a Lei Maria da Penha para estender sua proteção a mulheres transexuais.

“O Senado Federal vem à presença de Vossa Excelência informar os aludidos fatos supervenientes, que demonstram que a matéria objeto de apreciação desse Corte está sendo apreciada pelo Senado Federal, no exercício de sua competência constitucional típica de aprimorar a legislação penal existente”, dizia o documento.

No dia anterior, a presidente da CCJ, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), afirmou que pediria ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para solicitar a Toffoli que o STF aguardasse a análise destes projetos pelo plenário da Casa.

Ainda que o comunicado do Senado não pedisse formalmente a suspensão do julgamento, Mello defendeu que, mesmo que projetos sobre o tema tramitem no Congresso, eles ainda não foram aprovados e transformados em lei. Portanto, disse, persiste a omissão do Legislativo em tratar da questão.

O ministro argumentou ainda que a apresentação de um projeto de lei não garante sua aprovação por ambas as Casas. “Mesmo que eventualmente aprovado pela Câmara ou pelo Senado, ainda assim precisa ser aprovado pela outra Casa e terá de ser submetido ao presidente, e nada garante que o presidente o sancionará e o converterá em lei.”

Sua posição foi acompanhada por Fachin, relator da outra ação. Toffoli disse então que gostaria de fazer uma sugestão – sem esclarecer a princípio qual seria, para só depois afirmar que pediria para que o julgamento fosse adiado. O ministro destacou que os votos já proferidos tinham levado o Congresso a se mobilizar.

Mas o presidente do STF foi novamente interrompido por Mello, que ressaltou que os votos dos ministros levaram a pedidos de impeachment contra ele e seus colegas. “É uma postura intolerante. Uma denúncia feita simplesmente por exercermos nosso dever constitucional”, disse Mello.

Diante disso, o presidente do STF disse ter desistido de fazer sua sugestão e deu início à votação pelo plenário sobre a suspensão do julgamento. Com exceção de Marco Aurélio e Toffoli, os outros sete ministros acompanharam a posição de Mello e Fachin contra o adiamento.

‘A homofobia se generalizou’

Após um intervalo, a ministra Rosa Weber reiniciou a sessão com seu voto. Ela logo anunciou que acompanharia os votos dos relatores e defendeu que o “descumprimento do comando constitucional pelo Legislativo transcorridas três décadas abre a via da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão”.

“A mora do Legislativo em cumprir essa determinação está devidamente demonstrada, e há farta jurisprudência desta Casa de que a existência de projetos de lei em tramitação não afasta a mora inconstitucional que só se dá com conclusão do processo legislativo”, afirmou Weber.

Em seguida, ela defendeu que o STF já havia anteriormente entendido que o conceito de raça tem um sentido jurídico que vai além de características biológicas e compreende também características sociais e, portanto, pode ser aplicado ao preconceito contra LGBTs. E concluiu dizendo que a Lei de Racismo deve ser aplicada a estes casos “enquanto persistir a mora legislativa”.

Em seguida, Luiz Fux proferiu seu voto. Primeiro, explicou o que entende por crimes de homofobia e disse que eles “não são um fato isolado do cotidiano”. “A homofobia se generalizou”, afirmou.

Em seguida, reafirmou a demora do Legislativo em tratar do assunto – “Os projetos não andam” – e refutou o argumento de que o STF estaria usurpando uma competência do Legislativo ao equiparar a homotransfobia aos crimes de racismo já previstos em lei.

“O STF não está violando o princípio da reserva legal nem criando uma figura penal. Está fazendo uma interpretação da legislação infraconstitucional que trata do racismo”, afirmou o ministro, que encerrou comentando sobre os efeitos que a medida pode ter, ao dizer que a criminalização destas condutas “aumenta a autoestima destas minorias e lhes conforta, dá sensação de pertencimento à sociedade”.

“As ações afirmativas em relação aos afrodescendentes não só criminalizaram o preconceito, mas esta legitimidade constitucional representou um fato gerador que levou a uma abertura do mercado, de vagas em universidades, da vida em sociedade para este grupo. Assim também deve ser em relação aos integrantes da comunidade LGBT.”

O julgamento foi então suspenso pela segunda vez por Toffoli. A princípio, o ministro anunciou que seria retomado no dia 5, mas, depois, anunciou ter adiado seu reinício para o dia 13.

‘Constituição não pode ser mera folha de papel’

O caso foi retomado com o voto de Cármem Lúcia, que disse haver um “déficit legislativo inaceitável” no tema e reafirmou o dever do STF de corrigir essa falha e tutelar direitos fundamentais para impedir que a Constituição seja “mera pilha de papel”.

“O Estado legislador recebeu uma ordem constitucional (de punir toda forma de preconceito). A quantas anda isso 30 anos depois? O Estado juiz é agora chamado e vai se omitir também?”, questionou a ministra, que defendeu a aplicação da Lei de Racismo para condutas homotransfóbicas até que seja criada lei específica.

Cármem Lúcia disse haver uma “doença social de intolerância a padrões de gênero e orientação sexual que contamina a convivência” e destacou que pessoas LGBT são “desprezadas como não humanas”. A identidade de uma pessoa não deve ser usada como “pretexto para desigualdade de direitos”, afirmou a ministra.

“A matéria trazida nesta caso é feita de sofrimento e de dores por não pode viver ou pelo menos ter de tocar a vida com um enfrentamento permanente da inaceitação e da intolerância e de atos de indignidade e de indignação permanente, por não adotar um modelo que alguém ou algum grupo afirmou merecer respeito e ser o certo, como se o ser humano tivesse forma”, disse.

Em seguida, votou Ricardo Lewandowski. Ele reconheceu haver violência contra estas minorias e disse que a criminalização destas condutas discriminatórias é uma obrigação do Estado estabelecida pela Constituição. Portanto, haveria uma “dívida histórica” com estes grupos sociais.

“A omissão parlamentar em cumprir esse mandado pode se compreendida como um fenômeno político. Os atores políticos tem ciência de que são mais facilmente responsabilizados perante eleitores por suas ações do que por suas omissões”, disse Lewandowski.

No entanto, o ministro rejeitou a aplicação da Lei de Racismo nestes casos, porque isso criaria um novo tipo de crime, na sua avaliação. Lewandowski argumentou que a Constituição estabelece que esta é uma função exclusiva do Legislativo.

“A extenção do tipo penal para abarcar situações especificamente tipicadas pela norma penal atenta contra o princpio da reserva legal, que promove a segurança jurídica de todos”, disse Lewandowski, que defendeu que o Congresso fosse notificado para tomar as providências necessárias para a criminalização da homotransfobia.

Celso de Mello pediu então a palavra para esclarecer que em seu voto já havia dito que não propunha a criação de um novo crime, mas da aplicação do conceito de racismo a condutas discriminatórias contra pessoas LGBTs, com base em um entendimento anterior da Corte, em um caso sobre antissemitismo, de que o racismo vai além de critérios biológicos e compreende também uma dimensão social.

“Prevaleceu a noção de racismo como instrumento de inferiorização e de subjugação de determinadas pessoas por um grupo hegemônico”, afirmou.

‘STF está usurpando uma competência do Congresso’

Gilmar Mendes votou em seguida a favor das ações e defendeu que a demora “histórica e sistêmica” do Legislativo em tratar do tema tem contribuído para que sejam violados direitos fundamentais de homossexuais e transexuais. Isso cria a possibilidade do Judiciário agir para suprir essa lacuna, disse o ministro, para fazer cumprir uma ordem constitucional.

“A ausência de criminalização acaba contribuindo para restrições de direitos fundamentais. Essa inegável insuficiência sugere que as violações contra grupos LGBTs, que vivem em um alarmante estado de perigo, demandam uma ação imediata”, disse Mendes.

O ministro afirmou ainda que a Lei de Racismo punia originalmente apenas a discriminação por cor e raça e, ao longo dos anos, foi modificada para abranger também outros tipos de preconceitos, como etnia, religião e procedência nacional.

“A jurisprudência deste tribunal e o sentido constitucional clamam por uma ampliação progressiva (da lei) para repreender toda e qualquer forma de preconceito. Limitar o conceito de racismo ao seu sentido mais comum nega o princípio da igualdade”, afirmou Mendes, que defendeu a aplicação da Lei de Racismo até haver uma lei sobre o tema.

Décimo a votar, Marco Aurélio foi o único ministro a discordar da demora do Legislativo em tratar do tema, porque o texto Constitucional determina toda forma de preconceito seja punida, mas não necessariamente criminalizada.

No entanto, o ministro reconheceu que o público LGBT é alvo de violência e discriminação e fez críticas ao Legislativo. “Os números (de casos de violência) acabam ingnorados pelo poder público, porque os legisladores agarrams-se a padrões conservadores e, quando não legislam, implementam uma opção política”, disse.

Marco Aurelio afirmou ainda ser contra considerar este tipo de preconceito uma forma de racismo. Ao ampliar o conteúdo da lei, o STF estaria usurpando uma competência do Congresso de legislar sobre direito penal

“Ao fazer isso, a delimitação do alcance da lei não estaria vinculada à lei em sentido estrito mas ao subjetivismo dos magistrados no exercício de suas funções, com prejuízo à tão almejada segurança jurídica”, declarou.

“A eventual opção pela criminalização de condutas motivadas pela orientação sexual ou identidade de gênero há de se dar na esfera própria, não no plenário do Supremo, não podendo esta omissão ser suplantada pela extensão da lei em vigor.”

Toffoli encerrou o julgamento ao votar de forma breve. Ele anunciou que acompanharia a posição de Lewandowski, ou seja, reconheceu a omissão legislativa, mas disse que caberia apenas ao Congresso tratar do tema.

O que diz a lei

A homofobia e a transfobia não estão na legislação penal brasileira, ao contrário de outros tipos de preconceito, como por cor, raça, religião e procedência nacional.

Uma das principais reivindicações de militantes LGBT no país, ela chegou ao STF por meio de duas ações, movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e o Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente.

Elas argumentavam que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 determina que qualquer “discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” seja punida criminalmente. Ao não legislar sobre a homofobia e a transfobia, deputados e senadores estariam se omitindo inconstitucionalmente, por “pura e simples má vontade institucional”.

As ações pediam também que o STF fixasse um prazo para que fosse criada a lei e que, caso ele não fosse cumprido ou se um prazo fosse considerado desnecessário pela Corte, ela própria regulamentasse temporariamente a questão até haver uma decisão do Congresso e criminalizasse esse preconceito.

“O direito penal existe para defender a sociedade e também minorias e grupos sociais vulneráveis”, diz o advogado Paulo Iotti, doutor de Direito Constitucional e representante do PPS e da ABGLT nas ações. “Por isso, criminaliza o racismo e coíbe a violência contra a mulher, mas o Código Penal não é suficiente hoje para proteger a população LGBT.”

Iotti argumenta que o STF considerou o antissemitismo um tipo de racismo, definido como “toda ideologia que prega a superioridade/inferioridade de um grupo relativamente a outro” em um julgamento de 2003, e pede que o mesmo agora seja aplicado à homofobia e à transfobia.

“Queremos igual proteção penal. Se você criminaliza alguns tipos de opressão e não outras, passa uma ideia sinistra de que são menos relevantes. Não se pode hierarquizar opressões.”

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